quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

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Outra noite comum, eu devia ir pra casa e zapear pela tv. Prefiro andar. As ruas a noite parecem desertas de conteúdo. Só consigo ver pessoas andando, alheias ao mundo, alheias até à elas mesmas. Acho que estou da mesma forma. Olho a vitrine do carro novo. Talvez eu devesse reunir economias e comprar um carro. Mas pra quê? Se eu ainda vou preferir ficar em casa, ou andar, caminhar, pra respirar o ar puro e poluí-lo com cigarro. E eu vejo um bar aberto. Não devia ter chamado esse local de bar, botequim, acho que eu seria mais justo em dizer assim. Sento nessa mesa de madeira aqui fora. Dá pra ter o ar e a fumaça. E me deixa observar essa gente que povoa a rua. Levanto a mão e um garçom baixinho e suado me traz uma folha sulfite envolvido em contact. Pode ser uma Brahma mesmo amigão. Eu tentei ser simpático. Ele sorri e diz: pra aliviar o calor, chefe. Eu não parecia estar com calor. Eu ainda usava o uniforme do escritório, e essas calças de sarja não favorecem ninguém. Pensei como uma mulher, eu acho. A minha cerveja chega e eu não me sinto nada hipster. Se eu tivesse sentado numa cafeteria e pedido um cappuccino eu ia tirar foto pro Instagram. Mas hoje eu queria distância dessas redes sociais que só nos mostram quão solitários somos, atrás da tecnologia. Foi quando eu olhei para o lado. E vi ela.

Eu precisaria de várias folhas de caderno para descrevê-la. Primeiro porque ia querer desenhar a forma como os longos cabelos escuros faziam voltas por cima da sua blusa. Ou o jeito que ela cruzava as pernas calmamente, voltando o quadril para trás e jogando os ombros para frente. Ela parecia simpática demais. Daquele jeito que te irrita. Daquele jeito que me irritava, porque eu não estava por perto para rir com ela. Ela nem olhava pros lados. Não procurava nada, não buscava ninguém. Ela se bastava. Ao contrário do meu uniforme e postura formal, ela estava completamente em casa, vestia shorts e regata, e me fez pensar que ela acordava assim. Uma manhã de domingo. Apertei os olhos como se fosse zoom pra ver se ela tinha se maquiado. Ela era assim mesmo. Um sorriso nada perfeito mas completo, com os dentes, boca aberta e uma covinha, do lado esquerdo. Deus deve que sabia que se mandasse as duas covinhas, ele teria que parar de produzir outro tipo de ser humano e fazer apenas cópias dela. Mandou uma. Com fundo de 'não vou fazer mais, que fique por conta da sua imaginação'. Ele sempre brincando de war.

Eu bebi minha cerveja, aliviando o calor e a tensão que eu sentia quando ela virava pro lado da mesa. Se ela notasse que estava sendo observada, não seria tão natural e tão poética quanto devia. Deixei duas notas em cima da mesa, que valiam mais do que a cerveja. Mas eu precisava agradecer alguém por ter me deixado ver ela. E que fosse meu amigo garçom. Eu não podia simplesmente ir embora sem mostrar pra mim mesmo que eu estava muito agradecido. Nenhum seriado teria me feito sentir uma vontade incontrolável de cantar, nem de torcer pra que o mundo não acabe. Não sem antes eu vê-la novamente.Eu tinha encontrado um motivo pra viver os dias depois dela.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

mais tarde

Sheila, você reclama que não falo. Então, deixa eu falar de uma vez por todas.
Eu quero que você diminua esse cigarro, e pode começar por agora. Já é o terceiro e a gente tá na chuva. E eu molhei meu pé todo pra vir aqui. Hoje não era um dia bom pra conversar, mas não vai ter outro jeito. Você virou minha vida de cabeça pra baixo. E eu preciso falar logo antes que eu exploda. E entre no meu carro e chegue até o alpa em segundos. Você... Tá, não vou engasgar. Você é a culpada de tudo, sabe disso né? Sabe que se não tivesse bebido tanto aquele dia, nada disso tava acontecendo! Eu, na minha humildade jamais teria a coragem que você teve. E que coragem pra uma menina desse tamanho. E aí você fica aí no meu pé. E eu no seu. E a gente vai afundando juntos. Porque você descobriu como se usar, e o poder que pode ter. E logo na vez de quem? Claaaro que era na minha. Fica me contando histórias de terror, ainda não sei se pra parecer vítima pra mim ou pra eu sair correndo. Não está funcionando de nenhuma das duas formas. Você não é vítima de nada, caça com as duas mãos. E eu não vou sair correndo. Estou envolvido. Queria que nossas conversas fossem mais leves. Que eu não precisasse ficar tenso, esperando a próxima bomba. Que eu não tivesse que chegar nos lugares e as pessoas parassem de falar porque entrei. Que não tivesse que enfrentar uma muralha entre você e uma ou outra amizade, ou todas elas. Mas com você nada é fácil. Nada é tranquilo. Nunca é simples. Deviam colocar seu nome num furacão. Seria o melhor nome pra um. Mas olha. Falei demais. Quero você assim sabe, preta. Desse jeito que você tá agora. Bem, responsável. Pensando antes de falar e fazer. E eu prefiro assim. Mas não faz isso por mim. Faz por você. E para de mentir que 'de mim eu cuido', porque você não faz ideia de como se virar. Fica fazendo de forte mas é só uma menininha com medo. Por hoje é isso, amanhã eu já não sei. Mas vai ser assim. Você disse que podia ser do meu jeito.