sexta-feira, 30 de julho de 2021

resistência

O amor não acaba, ele existe em um amontoado de coisas. O amor está num vidro de perfume quebrado, está num chocolate com Nutella. O amor mantém numa carta escrita à mão ou numa imagem compartilhada por tantas pessoas. O amor mora num pote de coxinha, no trilho do trem. O amor mora na pesquisa de um telefone novo, num relógio no braço, no chaveiro da mochila. O amor troca a rota do carro, troca a foto que estava no porta retrato e guarda na gaveta. O amor escolhe outra cor de caneta da agenda, escolhe outro lugar para conhecer, mas ele está lá. Porque amor não acaba, ele muda para outro cômodo, e fica esperando se vai morar lá de vez ou se vai ver a luz do dia, espera pacientemente até que você decida o que vai fazer dele. Porque o amor é mais forte que nós, ele sobrevive onde nós juramos que não havia mais nada para florescer.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

O tempo nos dirá

Um dia alguém me enviou uma imagem com palavras escritas "você é uma frase bonita dessas que a gente sublinha no livro faz tatuagem, conta pra pra todo mundo, dessas que dividem a gente em antes e depois". Hoje, exatamente hoje eu cruzei com essa mesma imagem, sublinhada. E sem pensar, mandei de volta para a mesma pessoa que me enviou há alguns anos atrás. Parece outro mundo, outra vida, e tem tão pouco tempo. Os dias estão passando de uma forma que nunca haviam passado, lentamente, fazendo com que cada sentimento seja vivido, ao mesmo tempo que está indo rápido, desgovernado, e aumentando a distância entre cada marco da vida. Sempre fui uma pessoa que gosta de pessoas, mas nesse momento, nem de mim tenho gostado. É que os gritos presos na garganta estão sufocados, e ninguém mais usa lenço para oferecer quando as lágrimas rolam. A mão treme e fica difícil segurar a colher do doce. O gosto lembra outro doce, o doce momento compartilhado no passado. Ao passo que o futuro se torna palpável, ele se distancia, não é o desejado, mas é o real, e com ele o medo, de não poder somar, de não ser mais, de reconhecer o presente. Eu fui embora, mas eu queria ter ficado, e feito aquela tatuagem, e contado para todo mundo, e lido de novo, sublinhado, escrito na agenda, porque dividida eu já sou, desde o momento que te amei.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

9 - lembrancinha

Acordei com tanta ressaca que demorei conseguir focar a visão para entender onde eu estava. Eu estava em casa, até aí tudo bem, mas estava sentindo cheiro de café recém passado, e isso sim me alarmou. Aí eu ouvi duas vozes femininas. MEU DEUS. Corri pro banheiro para lavar o rosto e passar uma aguinha no cabelo e fui em direção à cozinha.
O bom dia das duas foi uníssono, Virgínia e Luna se olharam e riram juntas. Aquilo estava tão estranho que eu ri de nervoso.
-Bom dia senhoritas. Parece que dormi demais e perdi o nascimento das gêmeas siamesas. Não era hora de brincar mas eu estava muito desconfortável e sempre uso o humor como mecanismo de defesa.
-A Virgínia veio trazer um presente para você e nós duas concordamos que um café cairia bem, apesar de que ficou terrível! Onde foi que você comprou esse pó queimado einh, querido?
Quando ela disse querido, os pelos da nuca arrepiaram, os meus, os dela, os da Virgínia. Essa mulher era impossível, mas achei fofo ela querer demonstrar que andava passando algum tempo por aqui.
-Oi Antônio! Acho que você dormiu tempo demais mesmo, eu e a Luna acabamos descobrindo que fomos da mesma escola na infância, e que por uma ironia do destino, tivemos a mesma melhor amiga, porém em séries diferentes. Dá pra acreditar nessa coincidência?
Alguém pode me dizer quanto tempo essas duas passaram conversando? Eu já não sabia se sentava, se voltava para o quarto, se falava alguma coisa.
-Mesmo ruim, sobrou café para mim? Eu preciso muito de um café agora.
Sentei à mesa com elas, uma de cada lado, as duas de frente uma para a outra. Tinha uma sacola no chão, ao lado da Virgínia, acho que ela seguiu meu olhar e pegou imediatamente.
-Antônio, não é nada demais, é que eu fui em Londres outro dia desses e lembrei do quanto você sempre falou sobre o Big Ben, aí fui conhecer e lá eles vendem umas lembrancinhas diferente! Acredita que te trouxe uma peça original do dia da abertura em 1859, que caiu porque não era necessária e esqueceram de tirar ela do lado do relógio?
Eu tinha sim essa coisa com o Big Ben, sempre achei algo de outro mundo aquele relógio, enfim, eu não saberia agradecer esse presente que ela humildemente chamava de lembrancinha diferente! Isso deve ter custado uma fortuna!
Abri a sacola e era uma engrenagem, grande, de uns 15 centímetros, com ação do tempo estava bem enferrujada, mas era um tesouro, ali, nas minhas mãos.
-Obrigada Virgínia, eu não sei nem como agradecer. Isso me pegou de surpresa, mas eu não aceitaria nada menor de você! Você e sua mania de grandeza.
Eu ia encostar a mão na da Virgínia, mas aquilo pareceu tão injusto que de forma casual e sem perceber, coloquei a outra mão sob a da Luna. E aí as coisas ficaram mais estranhas ainda!
-Bom, café tomado, presente entregue, vejo que por aqui as coisas estão em ordem e fico feliz por isso. Preciso ir, mas também preciso elogiar que esse apartamento nunca esteve tão bem arrumado, e acho que todo o crédito deve ir para você, né Luna?
-Ele é um bagunceiro nato! Mas tem um bom coração. E dito isso, a Luna afagou a minha mão.

Depois que a Virgínia saiu, eu fui direto para o banho, tirar do corpo uma ressaca que não queria sair. Era domingo, então eu não tinha muito o que fazer, nem a Luna, e ela costumava passar o dia todo por aqui, a gente já tinha uma rotina sem nem notar. Há quanto tempo será que a gente estava fazendo essa coisa toda? De passar muito tempo juntos, ela sabendo que comprei um tipo diferente de pó de café, eu colocando a minha mão na dela e ela afagando em retribuição? O banho acabou sendo demorado porque fiquei refletindo sobre tudo o que estava acontecendo e eu sabia que ao sair desse banho eu teria um duro encontro com a realidade. Dito e feito.

-Olha Antônio, a gente precisa conversar. E antes que você venha com qualquer desculpa ou explicação, eu preciso saber uma coisa. Quem eu sou para você?
-Luna, espera sabe, eu tô de ressaca, o café estava mesmo horrível, a Virgínia estava aí e vocês duas estavam, sei lá, conversando. A gente pode conversar depois?
-Não. Eu não posso deixar para depois, porque isso é o que nós dois temos feito, deixado para depois, e depois a Virgínia aparece na porta do seu apartamento com um presente histórico caríssimo, sabe. E você fica todo diferente, e segura a minha mão. E eu só preciso saber agora, quem eu sou para você!
-Você tem sido alguém necessário para mim. De verdade. Mas eu não tenho mais explicações além disso. E nem sei se isso te serve, porque falando agora pareceu egoísta, mas é o sentimento que está em mim nesse momento.
-É, isso não serve, e você dizer isso é sim egoísmo, como sempre. Eu vou para casa.

Eu sequer tentei impedir ela de sair pela porta. Ela estava certa e eu, só para variar, muito errado. Eu sabia que não devia ter dito aquelas coisas, mas também, sabia que aquele não era o momento para ter aquela conversa. Eu estava frágil, e precisava digerir as coisas antes de falar alguma coisa. Mas não tinha o direito de machucar uma pessoa que era tão necessária para mim. Acendi um cigarro na janela e tentei expelir a fumaça e os problemas, tudo ao mesmo tempo. Estava funcionando até que meu celular tocou debaixo do travesseiro. Droga Virgínia.