segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

4 - Sopa de Letrinhas

Mal esperei a porta dar o estalo ao fechar e peguei aquele envelope. O motivo dela ter aparecido bêbada na minha porta estava nas minhas mãos e eu suava. Talvez até tremia. Me sentei no sofá e abri.

"Antônio.
não sou de longas cartas, nem de longos adeus. Por isso é um recado. Estou triste com a sua reação à minha viagem. Por um instante achei que me daria algum motivo pra eu ficar. O Sandro pediu e implorou pra que eu ficasse. Você não. Então eu estou indo, e espero que 
Quer saber? Estou indo pra te esquecer.
Sua encrenca
Virgínia."

Acho que tive um apagão. De horas. O que estaria acontecendo naquele momento não entrava na minha mente de forma alguma. Eu queria ler novamente. Mas eu tinha que correr e vê-la antes do embarque. E eu sei que não era possível. Primeiro porque não daria tempo e segundo que eu não sabia o que eu queria dizer. (Terceiro porque não sei se teria coragem). 
Ela era minha encrenca. Sempre. O Sandro, um fortão que ela insistia em ocupar seu tempo livre, pediu pra ela ficar. Quem toma whey consegue ter sentimentos? Que ódio desse idiota. Ele não tinha o direito. Será que ele sabia que ela me contava sobre os dois? Será que algum dia ele pensou que eu sabia que ele gostava de dormir com a luz acesa por algum trauma de infância? Pois é, Sr. Sandro. Eu sei de tudo. E guardo ódio por você ser um trouxa e ela ainda ficar com você. Ela disse com sua letra caligrafada que era MINHA encrenca. O que ela desistiu de escrever? O que eu tinha que fazer nesse momento? Encher a cara.



E assim foi o meu domingo, e a minha segunda. (Obrigado à esse santo que fez dessa segunda um feriado). Terça fui trabalhar, sem muita escolha e com muita ressaca. Abri meu e-mail com medo de mais alguma revelação dela. Não tinha. Abri as redes sociais. Nada. Conferi meu celular, até liguei pro fixo pra ver se a rede estava funcionando mesmo. Eu não tinha nenhuma notícia da Virgínia e ela tinha dito que estava indo para me esquecer. Me esquecer. Eu. Eu fui um idiota. Eu tinha que ter corrido até o aeroporto e feito um grande gesto, tipo filme, ou um flash mob. Já vi comédias românticas, apesar de negar fielmente. E eu não mandei nenhum emoticon com carinha feliz. Ela esperava chegar na minha casa bêbada e eu ter lido e a gente se amar? Aí então ela não iria? Comecei a digitar como se não houvesse amanhã, saiu tudo meio desconexo mas era real.

"Virgínia
Estamos no século XXI, não se usa cartas, e-mails são mais rápidos e não ficam esquecidos em baixo de portas. Eu li. E você tem esse jeito estranho de escrever as coisas, acho até que ficou faltando um pedaço da sua breve e vaga dissertação. Como estão as coisas aí? Conta liberada no exterior deve ser legal. Vai conhecer muita coisa e principalmente, muita gente. Eu quis ir te ver. Tipo lá no aeroporto. Mas não tenho carro e o transporte público é lento. Taxi é um pouco mais rápido, mas a gente já até discutiu sobre isso, lembra? Eles são lentos, caros e mau-humorados. Aquele dia foi engraçado, colocamos defeito em todos os taxistas que conhecemos, e até os que por ventura ainda iremos conhecer. Lembra que aí seu tio passou mal e tivemos que pegar um taxi pro hospital? Hahaha. Bons tempos. Fomos rindo e falando mal dele, sem ele notar, chamando pelo codinome 'sorvete'. Ah, mas então. Não deu certo de despedir, acho que você até prefere assim. Aí eu também estava meio atrasado com essas coisas aqui do jornal. Sabe como é, né? Grandes poderes, grandes responsabilidades, sou quase um homem aranha das notícias. E foi feriado aqui ontem. Aí já viu, meio corrido, meio de cama. Tá tudo normal aqui. E eu tô normal, o que era de se esperar já que eu fiquei em casa, enquanto você está na Europa. Sabia que a Europa é tipo muito gigante? E que se você pudesse, poderia ser mais específica de onde está na verdade? É que fica mais fácil procurar pontos turísticos pra te indicar. Ou pra pegar um voo. Hahaha. Estou brincando. Parece que meu e-mail ficou meio grande e já tá bom. É isso, encrenca. Até breve.
Abraços
Antônio."

Eu mandei e quis 'desmandar'. Foi ridículo. Eu falei coisas aleatórias, parecia uma sopa de letrinhas, não saiu nada com nada. E eu sinto o ódio dela como se ela leu cada linha caçando minha resposta. Eu não consegui. Vai saber se essa distância ia me mostrar que eu estava confundindo as coisas. E ela também. E tinha o Sandro medroso. E eu era um babaca. Voltei ao trabalho, Com o e-mail aberto, esperando a resposta dela. Em algum momento ela iria me responder. É claro que ia. Eu sei que ia. Eu esperava que ia.

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